sexta-feira, 30 de julho de 2010

Bento XVI e a missa romana tradicional : Publicando o motu próprio, restabelecendo nas missas pontifícias a comunhão de joelhos e na boca (aliás, trata-se da forma ordinária do rito da comunhão), enaltecendo o canto gregoriano, está evidente que o papa pretende resgatar valores preciosos não só da liturgia católica mas de toda a cultura ocidental. Como homem inteligente e bom observador das coisas, o papa sabe perfeitamente que na marcha da história há perdas e conquistas. Sabe que no século XX, após tantas transformações culturais, a Igreja tinha de reformar-se mantendo-se fiel a si mesma e a Cristo. Mas sabe também que nos últimos anos a Igreja sofreu grandes perdas.

 


Padre João Batista de Almeida Prado Ferraz Costa



Reações muito diversas provocou a resposta do papa Bento XVI a um jornalista em sua recente viagem à França. Disse o papa que o motu proprio Summorum Pontificum, que liberta a missa romana de sempre do poder discricionário a que se encontrava injustamente sujeita, representa um gesto de tolerância para com um pequeno grupo de católicos apegados à forma litúrgica antiga.
Em primeiro lugar, é preciso observar que, evidentemente, tal frase pronunciada pelo papa teve por fim “tranqüilizar” um episcopado recalcitrante em acatar o magistério pontifício em assuntos doutrinários de suma gravidade e não apenas no concernente a rubricas litúrgicas de somenos importância. Contra fatos não há argumentos. Poderíamos multiplicar as citações de incontáveis declarações de autoridades religiosas contestando o magistério da Igreja no que diz respeito, por exemplo, à ordenação de mulheres, à ética sexual, à moral familiar.
Prefiro, entretanto, ater-me ao campo da liturgia. Aqui temos exemplos gritantes da rebeldia diante da autoridade da Santa Sé. Vence em novembro próximo o prazo dado por Roma para que as conferências episcopais expliquem aos fiéis católicos a necessidade de corrigir a tradução da fórmula da consagração (pro vobis et pro multis – por vós e por muitos – e não como se diz hoje: por vós e por todos). Durante todo esse tempo não se verificou um pronunciamento sequer em acatamento do decreto da Congregação para o Culto Divino. Pelo contrário, consta que se fez saber à Santa Sé que não se quer obedecer e corrigir a tradução falsa e heretizante.
Diante de um clima de insubordinação à autoridade do Sumo Pontífice, a quem se quer reduzir a uma espécie de rainha Elisabeth II, o papa, como Bom Pastor, tenta salvar o salvável, quer dizer, evitar o mal maior, “segurar as pontas” e quase não pode agir positivamente no sentido de fazer cumprir suas ordens.
Sabe-se que a reação do episcopado francês contra o motu próprio foi furibunda. Recentemente um cardeal francês disse: “Queremos saber aonde Bento XVI quer chegar.” Está  patente a falta de docilidade. É o mínimo             que se pode dizer. Esse episcopado e outros do mesmo jaez, que mal toleram a missa tridentina em suas dioceses, é claro, aplaudiram a resposta do papa, porque com ela tentam enganar os católicos incautos negando o valor jurídico do rito romano tradicional.
Se os modernistas fingem não saber qual é a diretriz romana, um católico sincero e atento sabe muito bem, baseado em inúmeros fatos e provas, que Roma quer simplesmente restaurar a liturgia católica, devastada pela reforma litúrgica e causadora da crise da Igreja após o Vaticano II. E quem o diz não sou eu, mas o próprio cardeal Ratzinger.
Na verdade, Bento XVI tem de contemporizar, porque assim lhe aconselhar agir superior prudência. Mas diz o brocardo latino intelligenti pauca. Ao inteligente ou a quem quer entender bastam poucas palavras. No caso do papa, diria até que já não são poucas as palavras e gestos sinalizando sua intenção de restaurar a liturgia católica devastada. Bento XVI contemporiza, mas ao mesmo tempo sinaliza a seta.
Publicando o motu próprio, restabelecendo nas missas pontifícias a comunhão de joelhos e na boca (aliás, trata-se da forma ordinária do rito da comunhão), enaltecendo o canto gregoriano, está evidente que o papa pretende resgatar valores preciosos não só da liturgia católica mas de toda a cultura ocidental. Como homem inteligente e bom observador das coisas, o papa sabe perfeitamente que na marcha da história há perdas e conquistas. Sabe que no século XX, após tantas transformações culturais, a Igreja tinha de reformar-se mantendo-se fiel a si mesma e a Cristo.  Mas sabe também que nos últimos anos a Igreja sofreu grandes perdas.
 Com o abandono de valores clássicos da civilização, com a secularização da sociedade, a assimilação do dado da fé torna-se muito mais difícil pela falta de condições prévias que propiciem uma cultura aberta ao sagrado. A língua latina, a verdadeira música sacra, a autêntica arte na construção dos monumentos religiosos, a  educação cristã transmitida em verdadeiras escolas católicas, enfim a regeneração de todos os costumes e instituições cristãs com o sinete da santa tradição, tudo isso o papa sabe que é preciso recuperar e luta para isso com coragem e sabedoria.
Mais ainda. O papa sabe – podemos dize-lo com base em vários discursos seus – que, se não houver um reatamento do vínculo da tradição, se não houver  continuidade, é impossível haver cristianismo no futuro, não obstante as promessas de Nosso Senhor. Em uma palavra, o papa sabe que a situação atual da Igreja é grave. Pois um cristianismo sem identidade própria, em constante abertura e diálogo com o mundo, apenas com a preocupação filantrópica de melhorar as condições de vida do homem na terra, só pode reduzir-se a humanismo barato, desprezível aos olhos dos próprios humanistas ateus e objeto de escárnio da sinagoga de Satã.
De maneira que é necessário que a liturgia católica, rosto da Igreja, não se descaracterize nem perca suas raízes, sob o pretexto de ser mais compreensível ao homem moderno. Ao contrário, deve ser uma resposta e uma vacina contra a mentalidade racionalista e protestante que invadiu os ambientes católicos nos últimos anos, levando muitos a perder o sentido do mistério, a ver a missa como festa comunitária ou simples palestra animada.
A liturgia pode ter um desenvolvimento sempre no sentido da tradição. Não se trata de defender uma estagnação ou engessamento dos ritos, mas esse crescimento deve ser orgânico. Sempre defendi que o chamado missal de São Pio V, que tanto veneremos, poderia ter seu lecionário enriquecido, sem incorrer no biblismo da reforma litúrgica. No próprio dos confessores, das virgens e viúvas, poderia haver maior diversidade de leituras extraídas das missas pro aliquibus locis. Igualmente, o tempo do Advento poderia ter algumas missas para as férias. Diga-se o mesmo quanto aos prefácios. Não nego o valor pedagógico da repetição dos textos da Sagrada Escritura, ignorado pela reforma de 1969 e tão bem ressaltado por Romano Amerio em sua crítica. De qualquer modo, um enriquecimento é possível para evitar o perigo de parecer enfadonho a alguns.
Voltando a Bento XVI, acode-me um pensamento do Padre Antonio Vieira. Diz ele com muita verve que Cristo queria abolir a circuncisão e, no entanto, submeteu-se a ela, embora não estivesse obrigado. Mas como um pedagogo agiu assim para ser mais eficaz em seu propósito: “Pouco a pouco se fazem as coisas grandes, e não há melhor arbítrio para as concluir com brevidade, que não as querer acabar de repente.” (Cf. Sermão dos Bons Anos).
Será que Bento XVI leu Antonio Vieira?!
Portanto, aos tradicionalistas exaltados que desconfiam das intenções do papa quanto à tradição litúrgica e ficaram descontentes com a sua frase, recomendo maior ponderação. E aos progressistas que sabotam a obra do Santo Padre, fingindo desconhecer seu propósito, simplesmente os desengano.